sexta-feira, 3 de abril de 2015

Campos do Paraíso ♥

  Verdade. Eu a via em seus olhos, tentada pelo que eles me demonstravam e por um instante fez meu coração bater mais lento como se estivéssemos em slow motion. O destino havia me pregado uma peça das piores que pude imaginar. Mexer com sentimentos não é brincadeira mesmo para alguém como eu ou como o Don.
  Pela primeira vez na vida estou completamente sem chão, sem saber por onde começar, continuar ou terminar o que estava fazendo… Não posso compartilhar isso nem com papai, ele não entenderia. Lembranças traiçoeiras são as únicas coisas que vem em minha mente, lembranças de seu toque, de seu cheiro, de seu sabor, de seu olhar e do aconchego de seus braços, mas ele sabia o tempo todo que iria tudo terminar um dia e quando acontecesse seria horrível. E mesmo assim ele manteve o plano de estar perto de mim, ele sabia quem eu era e sabia o que ele era, principalmente. Então por que não conseguia ver satisfação em seus olhos? Eu dizia que era a verdade que eu via, mas qual verdade? Ele nem sequer me encarava mais e eu não sabia como reagir.
  Ainda me lembrava do rosto dele me sorrindo pela primeira vez. Estava na quermesse do padre Antônio ajudando a servir as crianças e tomando conta delas durante as brincadeiras quando ergui a cabeça e o vi me olhando fixamente. Lembro-me de ter sentido o rosto corar. Ele era lindo, perfeito, um deus grego popularmente falando. Com uma jaqueta preta de couro, aliás, toda sua roupa era preta. Os cabelos muito negros contrastavam drasticamente com a pele branca como mármore e os olhos verdes, que me examinavam, eram sobrepostos de sobrancelhas grossas. O canto da boca dele se ergueu quando percebeu meu desconforto, lábios muito vermelhos formando um sorriso para meu rosto visivelmente corado.
  Seu nome era Donald Wollerman, seu pai era diplomata e estava de passagem por essa região. Foi o que me contara na nossa primeira conversa. Devia ter por volta de um e oitenta e cinco de altura e sua pele era macia, percebi quando ele segurou minha mão para atravessar a Avenida Principal. E apesar de permanecer sério na maior parte do tempo, ele ria das minhas piadas sem graça e sempre fazia elogios.
  Ele dirigia uma Mercedes vermelha incrivelmente reluzente de tão limpa. Faria vinte e quatro anos no próximo mês e havia servido o exército na Alemanha, fato sobre o qual ele adorava conversar. Falara como fora estar no Iraque durante dois anos, vivenciando o campo de batalha, vendo gente morta e tentando salvar seus companheiros. Interessou-se por minha personalidade, ele dissera. Dissera que eu era uma garota sem comparações e que gostava do tempo que passávamos juntos, essas coisas faziam meu estômago dar cambalhotas. Ele era gentil e rústico, plena antítese. Tinha um ar durão, mas suas palavras sempre eram doces, assim como seus lábios.
  Sim, ele me beijara. Passou a mão em meu rosto, em seu contorno, seus dedos estavam gelados devido ao frio. Ele desenrolou meu cachecol e calmamente pôs-se a beijar meu pescoço. Senti meu corpo estremecer, e ele foi beijando meu queixo, até chegar a minha boca. Ele me olhou antes como se pedisse permissão, mas permaneci parada e ele tomou isso como um sim. Beijou meu lábio inferior primeiro e eu em poucos segundos já estava com os braços ao redor do pescoço dele enquanto ele me imprensava entre seu corpo e uma árvore naquele final de tarde de inverno em Smallrise. Víamo-nos quase todos os dias e ele parecia se empenhar ao máximo para estar comigo, me pegava no colo, me dera um bichinho de pelúcia no Natal, jamais poderia imaginar que aquele rosto tão convidativo era uma máscara.
  Certa vez ele, depois de me beijar, chegou com a boca junto ao meu ouvido e sussurrou.
  — Queria ser um anjo, mas não passo apenas do que sou.


Perguntei o porquê daquilo, mas ele balançou a cabeça e me beijou novamente. Agora eu entendia. Ele passou a mão em volta do meu pulso enquanto eu o olhava indiferente. Por que todas essas lembranças? Ele segurava meu pulso com força e no fundo, bem no fundo, eu estava com medo. Ergueu a cabeça e fitou-me por breves segundos antes de dar um suspiro.
  — Acho que deixei as coisas irem longe demais. – falou baixo e eu podia jurar que sua voz saiu sufocada.
  Continuei em minha pose sentindo meus olhos se encherem de lágrimas. Acha que foi longe? Ele acha? Ele se deitara sobre meu corpo uma noite, fizemos amor e agora ele achava que tinha ido longe demais. Engoli seco puxando meu braço, mas o aperto dele estava firme.
  — Não me culpe, Mi… - o jeito como ele falava meu nome, o modo como os lábios dele pronunciavam essa simples monossílaba fez meu coração martelar dentro do peito. — É a minha natureza. Fui criado assim e sou quem sou.
  Abaixei a cabeça tentando evitar que ele visse meus olhos derramarem lágrimas, mas ele sabia que eu estava chorando, então segurou meu queixo com a outra mão e o levantou.
  — Não faz assim, não. – sussurrou secando meu rosto.
  — Alemanha, é? Iraque… - falei, mas minha voz saiu mais esganada do que imaginei.
  — Na verdade foi o Egito, no Império Romano fui a consciência de César e de Nero. Depois… - ele fez uma pausa secando meu rosto pela segunda vez. — As Cruzadas foram uma das minhas ideias mais ousadas e diferentes. Estive na Europa junto de Napoleão e Hitler, e sim, ultimamente estive no Iraque, excetuando-se a minha longe estada na Palestina.
  Não podia mais conter minhas lágrimas, elas desciam a cada palavra dele e meu corpo termia de cima a baixo, mas não desviei os olhos dele um minuto sequer. Ele também não desviou o olhar de meu rosto, mas havia algo errado com ele e era isso que estava me incomodando. Ele parecia sentir dor a cada palavra que me dizia, parecia que ele estava lamentando tudo isso que fizera em seu passado e, se não tivesse com a vista embaçada, diria que ele também estava a ponto de chorar.
  — E o que aconteceu, perdeu seu escalão? Direto do campo de batalha pro quarto de uma menina do interior? – perguntei fazendo um esforço enorme para não deixar aparecer minha dor mais do que já estava.
  — Eu cometi um erro… - ele começou, mas parou e parecia estar pensando no que ia dizer. — Você é militar, Micaela. Sou sua maior tentação, por isso estou aqui.
  Ele estava insinuando que a culpa era minha? Minha cabeça estava rodando, as lembranças de nós dois não queriam ir embora. Eu me apaixonara por… Ele. Como se estivesse lendo meus pensamentos, ele balançou a cabeça tentando me confortar.
  — Não é sua culpa ter se apaixonado. Eu sou a forma de todas suas tentações, tenho a forma do seu maior desejo.
  Então eu senti algo que nunca pensei que fosse sentir em relação ao Don. Eu senti repugnância. Não queria que ele me tocasse mais, não queria mais vê-lo, não queria mais falar com ele, mas meu coração ainda batia acelerado só por ele estar segurando meu pulso com toda aquela força.
  — Você disse que cometeu um erro. – pressionei.
  — Sim. – ele respondeu ainda olhando bem dentro dos meus olhos. Aproximando-se encostou os lábios dele nos meus dando-me um beijo singelo antes de voltar a se afastar. — Você é a regida de Miguel, não tem ideia do poder que exerce sobre as criaturas ao seu redor.
  — Do que está falando? – solucei me odiando por ter gostado do beijo dele.
  — Você é encantadora e mesmo sendo o que sou também me sinto atraído por você. – franzi o cenho enquanto ele erguia uma das mãos para secar meu rosto novamente. — Mas sou desprovido de sentimentos, Micaela. Só sigo meu propósito, sou um escravo do meu ser, dessa forma não posso te amar. Mas eu quis…
  — Quis o quê? – estava começando a ficar confusa.
  — Eu quis te amar. Eu quis ser humano e te amar.
  — Devo me sentir lisonjeada? – perguntei sarcasticamente.
  Ele balançou a cabeça respirando fundo. Eu não estava de todo errada, aquilo estava machucando ele também. Não humanamente machucando, mas não foi o fim que ele desejara para a gente. Era o que ele sabia que aconteceria, mas não desejara.
  — Eu conheci muitas mulheres, acredite. Muitas. Maria I da Inglaterra era tentadora com todo seu rancor, mas nenhuma delas foi como você. Você é simplesmente pura.
  Bufei balançando cabeça. O conformismo começava a tomar conta de mim e logo minhas lágrimas não caiam mais tão intensamente como antes. Eu conseguia ver bem o rosto dele agora me encarando, sem nenhuma expressão. Diferente dos olhos. Eles deixavam claro o confronto que havia dentro de Don.
  — Depois de dez mil anos, eu não sei como nem se seria possível isso acontecer, mas eu senti vontade de ser mortal.
  — E isso não seria possível? – me surpreendi com minha própria pergunta. Não queria parecer desesperada para ele.
  Ele ficou quieto por um longo tempo, só franziu as sobrancelhas.
  — Nós dois sabemos com isso vai terminar. – fechou os olhos pela primeira vez. Enfiou uma das mãos no bolso e retirou um pedaço de pergaminho cuidadosamente enrolado, parecendo ter sido importado direto da Idade Média, e depois de abrir os olhos enfiou o canudinho em minha mão. E soltou meus pulsos.
  — O que terei que fazer? – perguntei desejando imensamente que ele me abraçasse e me passasse segurança, mas ele não o fez.
  — Tem uma fonte de força. Todos os Cavaleiros têm uma. – disse a contragosto.
  — Qual é a sua? – meu peito arfava devido à minha respiração acelerada e assustada com a possível resposta.
  — Pense Micaela. – ele sugeriu. — Você é inteligente.


  Olhei seu carro vermelho reluzente, eu nem por um instante pensei naquela imensa e cara dica onde eu passeei pela cidade. Entendi o que ele queria dizer sobre a fonte de força.
  — Terei que te matar? – perguntei.
  — Não exatamente, mas esse corpo jovem do século XXI não terá a mesma sorte que eu. – respondeu fazendo meus olhos se encherem de lágrimas novamente.
  — Voltarei a vê-lo um dia? – tentei ainda tirar alguma notícia boa dessa loucura toda.
  — Don? Não. Mas sim, voltará a me ver um dia. – ele levou os dedos delicadamente até meu rosto e o acariciou. — Vamos nos ver no Apocalipse e quem sabe depois… Você será uma general muito boa no que faz, e há de me encontrar durante sua jornada. Afinal, eu sou Guerra.


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